quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Recordando outros tempos

Nota: A autora deste texto é minha companheira de viagem desde há quase 50 anos. É natural, pois, que partilhemos este espaço de recordações, no que será um blogue a várias mãos...

No ano de 1961, aquando do início da guerra colonial, era o meu irmão ainda um adolescente. Com a guerra cresceram, nos anos que se seguiram, os jovens portugueses, aguardando como condenados, a hora da partida. O pesadelo chegara traiçoeiro, ensombrando milhares de famílias e trazendo a muitas delas o luto, que hoje ainda se mantém vivo.

Em nossa casa, os filhos viveram a guerra através do tio, que um dia também partiu, rumo à Guiné. Ele que fora menino pacato, que se fizera homem recusando toda a violência, lá foi de abalada, entregue à sorte, que outra coisa o não poderia proteger. Aqui ficámos nós, com o medo dos que ficavam e viam partir os familiares. Chegavam com frequência os aerogramas endereçados aos sobrinhos, recheados de engraçados desenhos que ele coloria, de muitas histórias ou divertidas charadas. Acolhíamos as notícias sem entusiasmo, porque cada minuto em África escondia mil perigos, e as cartas chegavam sempre com grande atraso. Só os pequeninos faziam da chegada do carteiro um motivo de alegria. Era natural. Por vezes eles procuravam saber mais coisas sobre a guerra. As irmãs perguntavam: O Paulo Miguel também vai? Nós acreditávamos que tudo terminaria entretanto, ou que, de alguma forma, o não «deixaríamos» ir.

O tio regressou da Guiné «salvo», que lá por dentro as recordações amargas não se apagariam nunca. Regressavam os mortos, os estropiados e os «outros», tristes e envelhecidos, doentes na alma, com um ror de lembranças que raramente partilhavam. Numa noite, o meu irmão ficou connosco até tarde. Do relato inesperado e espontâneo que então surgiu, colhidos pela surpresa e emocionados, escutámos o desabafo. Estivemos com ele no mato guineense, atravessámos clareiras de morte, silêncio e medo. Sentimos o suor no corpo cansado e vimos cair companheiros.

O dia 25 de Abril de 1974 foi para nós, em família, um dia diferente.

As perguntas sucediam-se (os quatro filhos tinham então entre 7 e 13 anos): A guerra ia acabar? O que era a PIDE? Porque havia presos políticos? Porque é que nunca lhes tínhamos falado nestas coisas? Explicámos o que era a polícia política e falámos do medo que se instalara em muitas famílias, receosas de que uma simples conversa em casa pudesse trazer algo de muito desagradável.

No dia seguinte as aulas reabriram e os filhos retomaram a sua actividade. Vi-os partir nessa manhã, muito assustada. Estava ainda escuro e Lisboa tinha sido palco, na véspera, de incidentes próprios de um tempo de revolução. Mas eles tranquilizaram-me. Tudo ia correr bem, disseram. E assim foi...

Recordo um diálogo acontecido em Setembro de 1977 num programa da TV intitulado Gente Crescida, em que a mais nova (então com 12 anos), tendo como parceiro de conversa o Padre Alberto (professor, grande amigo dos jovens e conhecedor profundo dos seus problemas, que foi assassinado barbaramente dez anos depois), dizia após longo e interessante diálogo: Se não fosse o 25 de Abril, o meu irmão, que tem agora 18 anos, iria para a guerra!.

A cerca de três décadas de distância, há que reconhecer: 25 de Abril de 1974 foi o início de um tempo diferente, para melhor, apesar de tudo.


Artigo de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicado no jornal O Mirante (Abril.1989) e lido no programa radiofónico A História Devida, RDP-Antena1 (06.Setembro.2006).


Inês Fonseca Santos, Nuno Artur Silva e Miguel Guilherme, nos estúdios da Antena 1, durante as gravações de um dos programas d'A História Devida.

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