sábado, 2 de abril de 2011

As nossas mãos, encontro de sentidos

O ano começa e vou até ti de mãos nuas. Tento despejar de mim todos os cansaços passados, todos os desalentos, todos os pensamentos, preocupações, todos os escuros. Tento acender luz nova nos meus olhos para os teus sedentos. Quero ajudar-te a sentir o prazer de olhar e ver as coisas profunda, vagarosa e demoradamente. Assim nascem as melhores perguntas, as que mais nos fazem caminhar e aprender.

Serás novo para mim. Eu nova para ti. E haverá no nosso mútuo olá de primeira vez uma coisa fresca de fruta doce de Outono. Hei-de ajudar-te a distinguir os sabores que o saber pode partilhar. E o gosto apurar-se-á em cada colher de sopa mágica que tomarmos na mesa que vamos partilhar. Sei que te darei tudo o que puder, mas pedir-te-ei muito mais do que aquilo que te posso dar. Para que sejas tu a progressivamente saborear, a construir (e não eu através de ti).

E já sei que, provavelmente, as minhas mãos se encherão das tuas. Nelas vais ler os muitos anos na companhia de ti sem seres exactamente tu. Perceberás as mil texturas de que é feita uma estrada. E descobrirás que também consegues moldar formas novas, tornar macio o áspero, encontrar o quente que se esconde no frio. Te direi, um dia, das minhas causas, das minhas lutas, porque as não esqueço e é por ti que elas se desenham e cumprem. Mas apenas depois de crescermos os dois um bocadinho mais, nesse exercício de aves aprendendo a voar juntas e separadas. As tuas causas, as tuas lutas serão as tuas.

O ano começa e vou até ti de mãos nuas. Porque quero ter espaço para ti em mim. Quero os meus sentidos livres no encontro com os teus. Sacudo os restos do pó acumulado do ano que já foi. Lavo-me (procuro lavar-me?) de tudo o que fere o sorriso que te quero dar. Afasto o cheiro menos bom do que é velho e desnecessário, perfumo a preciosidade antiga que faz falta, decido partilhar o aroma dos futuros possíveis. Das flores que semearmos a meias. Mereces um sorriso fresco e claro. Um cheiro a cama feita de fresco. Tudo novo por ser mesmo novo ou apenas porque o é aos olhos de quem vê pela primeira vez o que pensava já conhecer.

E sei que, nos anos contados a partir desse sorriso primeiro, iremos entrelaçar-nos numa teia macia que não prende, e ajudará o difícil exercício de libertação. E abraçar-nos-emos de mil formas possíveis, percorrendo com o corpo bem desperto todos os caminhos reais e sonhados. E hei-de escutar-te sempre, mesmo quando não te ouvir. E ajudar-te-ei a descobrir essa arte preciosa de saber colar os ouvidos ao universo infinito que nos habita por dentro e ao mundo, que tantas vezes dizemos ser pequeno, desarrumado fora de nós. Na escuta se aprende o prazer e a importância do som. Se cresce em cada aventura entranhada nos dias. Tudo é música, até o silêncio.

Vais descobrir. Basta quereres, deixares, aceitares as minhas mãos, quando bater à tua porta. Acreditas em mim se disser que está também nas tuas mãos? E as minhas mãos na companhia das tuas passarão a ser as nossas mãos.

(Com um cuidado especial, segredo que todos os Professores deviam conhecer: saber sempre, em cada minuto partilhado, onde acabam os meus dedos, onde terminam os meus sentidos e começam os teus... As tuas asas?)


Texto de Teresa Martinho Marques


Correio da Educação ASA, n.º 265, 11.Setembro.2006


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