sábado, 16 de julho de 2011

A casa da tia Maria Luísa


Todos, ou quase todos nós, guardamos como recordação das nossas brincadeiras de meninos, um certo lugar. Para mim, foi a casa da tia Maria Luísa. Lá está ainda, no Planalto de S. Bento, em Santarém, construída no ano de 1941, pintada de branco e com janelas debruadas a vermelho. No terreno que a envolvia, ficava o quintal com a capoeira, o cão de guarda e a cerejeira que ao longo de anos foi crescendo e quase tocava a janela de um dos quartos do primeiro andar. Muitas vezes nos debruçámos nela para apanhar as bagas vermelhinhas. Nunca houve árvore mais bonita. Nem frutos mais doces! Havia ainda a horta e o jardim, o tanque grande para as brincadeiras de verão e para as regas.

Pelas traseiras, entrava-se em casa por um alpendre, cujo chão coberto de mosaicos nos permitia ensaiar “vistosos” passos de dança e dar mesmo... alguns trambolhões. No alpendre, havia dois tanques para a lavagem de roupa, uma pequena casa de banho e a sala para o arranjo dos lençóis, toalhas e vestuário em geral. Era uma dependência agradável, cheia de luz, com janelas e portas que davam para o jardim e... com música saindo de uma, caixa estranha sem botões (tratava-se de um altifalante), um luxo naquela época. Cuidar da roupa era uma das tarefas da tia Maria Luísa. Muitas vezes a encontrei ali, com “montanhas” de peças que ela pacientemente borrifava, dobrava ou passava a ferro.

Lembro a porta estreita que nos introduzia no interior da casa, com o seu grande corredor liberto de móveis. De um lado, a cozinha e os seus odores, do outro, a sala de jantar, de mobiliário simples e funcional, com a mesa colocada no centro, mesa que se “desdobrava” a todas as refeições para os da casa (a família era grande) e para os que apareciam de surpresa. Sempre foi assim. Ao fundo do corredor ficava a sala do piano, sombria, talvez porque as paredes estavam revestidas de retratos muito antigos. Ao lado, o escritório do tio Américo, com uma bonita mobília negra chapeada a metal amarelo.

Tínhamos acesso à garagem através de uma portinha ao lado do escritório. Sentados no velho e belíssimo Citröen (eu, meus irmãos e primo), o primo mais velho ao volante, lá partíamos mundo fora...
De referir ainda a casa do lavatório onde todos brincávamos numa improvisada casa de bonecas. No primeiro andar ficavam os quartos e a sala de banho, muito moderna, tal qual as que víamos nas escassas idas ao cinema.

Ao sótão, íamos pouco. As divisões serviam para arrumações. Tínhamos um certo “respeito” pelo piso superior. Lembro-me que olhava com algum receio o lance de escadas que nos conduzia até lá. Preferia não arriscar. Estava-se muito bem cá em baixo!

A família sofreu muitos revezes, que davam para uma longa história. Todos foram desaparecendo, um a um, mais ou menos tragicamente. No casarão habitam agora três mulheres, as mais jovens. A tia Maria Luísa deixou-nos também há alguns anos, após prolongada doença que a manteve indiferente a tudo e a todos, durante anos. Lembro hoje, com saudade, as brincadeiras inventadas por cada um de nós ao longo da casa (postas em prática sem quaisquer proibições!), como atravessar a cozinha em correria para aterrar mais depressa no quintal, as sessões de cantigas e teatros, a casa das bonecas, o velho automóvel...

Os grandes tinham então muito tempo para se ocupar dos mais pequenos e amá-los sem pressas. Quantas tias Luísas ajudaram, assim, a crescer muitos de nós, dando força a coisas que, mesmo singelas, marcaram o nosso modo de estar na vida.

Texto de Maria da Piedade Pinheiro Martinho
publicado no jornal O MIRANTE em Novembro.1989

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