segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Urânio, tráfico e bombas

1. Os órgãos de comunicação social fazem-se eco, de vez em quando, de notícias dando conta de movimentos clandestinos de materiais nucleares para fins duvidosos. Desta feita, e reportando-me a notícias do princípio de Julho [1996], tratar-se-ia do tráfico de 25 quilogramas de urânio-235, de origem desconhecida e com destino incerto.
 E talvez porque havia, supostamente, dois portugueses metidos no “negócio”, o eco foi mais intenso e persistente do que é habitual. Como sempre acontece nestas alturas -- e aparte outras interrogações ameaçadoras que ficam no ar, à espera de resposta --, uma questão importante que se punha era a de saber se, com 25 quilogramas de urânio-235, seria possível construir uma bomba nuclear.
Acontece que os elementos informativos em que se baseiam tais notícias não são muitas vezes credíveis do ponto de vista técnico, o que dificulta, ou impossibilita mesmo, uma apreciação objectiva do problema.
Uma razão possível para a falta de consistência dos dados disponíveis reside, precisamente, no facto de o rigor da linguagem técnico-científica não ser compatível com a pressa com que se pretende encontrar explicações para situações que não se dominam. Nestas circunstâncias, se não houver o devido cuidado no tratamento da informação, poder-se-á estar a contribuir para semear a confusão e gerar mal-entendidos.
Embora não seja especialista em aplicações militares da energia nuclear, e correndo o risco de estar a meter a foice em seara alheia, atrevo-me a alinhavar algumas considerações sobre certos aspectos básicos que são comuns às aplicações energéticas para fins pacíficos, na expectativa de poder ajudar o leitor a formar a sua própria opinião.  

2. No caso da notícia referida acima, falou-se de “urânio-235, de “urânio enriquecido em urânio-235 e de “urânio altamente enriquecido em urânio-235. Ora, estas expressões não são equivalentes.
O urânio que se encontra na Natureza é basicamente uma mistura de urânio-238 (99,28%) e urânio-235 (0,72%). Por “urânio enriquecido” entende-se o urânio em que a percentagem de urânio-235 é superior a 0,72%. O enriquecimento do urânio, que faz apelo a processos tecnológicos muito complexos, pode ir desde cerca de 2-5% (caso do urânio utilizado em certas centrais nucleares) até valores superiores a 90% (caso do urânio utilizado nalguns reactores nucleares de investigação ou susceptível de ser utilizado no fabrico de bombas nucleares).
Em consequência, quando se fala de “urânio enriquecido (ou altamente enriquecido) em urânio-235, há que saber exactamente qual o valor do enriquecimento, porque não é indiferente que o enriquecimento seja 10% ou 95%, por exemplo.
E mais: há que saber, também, sob que forma se apresenta o urânio, porque não é indiferente que se encontre sob a forma de óxido, sob a forma de liga (com outro metal, como o alumínio) ou sob a forma de metal puro.
Ainda no caso da mesma notícia, também foi referido que o material em causa poderia ser “urânio enriquecido em plutónio”, o que é algo que não faz sentido -- como ressalta do que ficou dito antes. É possível que a utilização desta expressão resulte de informação mal assimilada, talvez por haver reactores nucleares que utilizam  misturas de óxidos de urânio e plutónio ou pelo facto de o urânio-238, uma vez irradiado com neutrões, dar lugar à formação de plutónio (elemento químico que não existe na Natureza).
Trata-se, porém, de coisas diferentes, que envolvem conceitos distintos.

3. Admitamos, então, por hipótese, que o material focado na notícia em questão era “urânio altamente enriquecido em urânio-235, com um enriquecimento compreendido entre 90 e 95 por cento, e que se apresentava sob a forma de metal puro. No que se refere à quantidade, falou-se insistentemente em “25 quilogramas”, mas também em “7,5 quilogramas”, como foi dito num telejornal. Houve quem dissesse que 7,5 quilogramas eram “suficientes” para construir uma bomba nuclear, mas houve quem dissesse que 25 quilogramas eram “insuficientes”. Houve mesmo um jornalista a quem uma “fonte segura” afirmou que 1 quilograma de urânio-235 bastava para fazer uma bomba! Ora, esta afirmação deve resultar também de informação mal assimilada, talvez pelo facto de a quantidade de urânio-235 consumida no decurso da explosão de uma bomba nuclear equivalente a 20 quilotoneladas de TNT ser da ordem de 1 quilograma. «Afinal, em que ficamos?», interrogar-se-á o cidadão comum.
Para se poder utilizar o urânio-235, concretamente sob a forma de uma esfera metálica colocada no ar, de modo a satisfazer os requisitos mínimos inerentes à chamada reacção de cisão nuclear em cadeia auto-sustentada -- condição sine qua non do funcionamento dos reactores nucleares (libertação lenta e continuada de energia) ou dos engenhos nucleares (libertação rápida de energia, com carácter explosivo) --, é necessário dispor de uma quantidade daquele material da ordem de 50 quilogramas (“massa crítica”). Todavia, a propósito deste valor, importa esclarecer o seguinte: (a) se o enriquecimento do urânio for inferior a 100%, a massa crítica é superior; (b) se a configuração não for esférica, a massa crítica é superior; (c) se a matriz em que o urânio-235 se encontrar for heterogénea, a massa crítica pode ser inferior; (d) se a esfera for envolvida em aço inox, a massa crítica é inferior; etc. Como se vê, não se pode falar, em termos definitivos, de massa crítica de urânio-235, porque o seu valor depende de múltiplos factores.
Finalmente, afigura-se conveniente sublinhar uma evidência: uma coisa é dispor de uma porção de uma certa matéria-prima, e outra coisa, muito diferente, é ser-se capaz de fabricar, a partir dela, um produto final. Por exemplo, uma coisa é dispor de umas toneladas de minério de ferro ou de alumínio e outra coisa é construir um automóvel.

Artigo publicado no semanário Expresso, N.º 1238, 20.Julho.1996

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