quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Na Rota da Terra Branca - CHAMUSCA

O Centro Regional de Artesanato anima-se. A Câmara Municipal da Chamusca oferece um “Abafado de Honra” aos participantes na apresentação de um Livro de co-autoria de um Chamusquense. E depois da energia nuclear, radioactividade e histórias de cientistas que trabalharam a dobrar para saborear metade do conteúdo de garrafas de vinhos afamados, à procura do trítio, e de outros que descobriram que o vinho estava falsificado por ser pouco radioactivo, a conversa acerejou-se divergindo ao sabor do acaso, para, no final, se ajeitar uma Caminhada à Chamusca.


A Chamusca espraia-se ao longo da Estrada Nacional 118. É uma das últimas vilas ribatejanas, da borda-de-água, que mantém as características urbanísticas da região e que ainda não sofreu a pressão demolidora de um forte movimento demográfico. Porém, é notório, mesmo ao visitante mais descuidado, que tem havido um trabalho constante de melhoramento das condições de vida, acompanhado de preservação da identidade cultural. É uma vila limpa.


A vila nasceu ao longo da estrada. Na rua principal situavam-se os prédios dos moradores mais abastados; mais para o interior, acotovelavam-se as gentes das classes médias, relegando para os outeiros que cercavam a vila, as casas mais modestas do povo humilde. E quem pense que a morte iguala os homens, visite o cemitério da vila, onde encontrará reposta a mesma ordem social em tudo semelhante à terra dos vivos. Ali, na rua principal, os mausoléus dos poderosos, enquadrados pelas campas rasas, com direito a lápide perpetuadora de um nome que não quer ser esquecido; ao fundo, o chão liso, sepultura incógnita, à espera da vala comum.


Num prédio contíguo aos Paços do Concelho viveu, em meados do séc. XIX, o político Setembrista, Passos Manuel, dedicando-se à agricultura em propriedades, que, entretanto, havia adquirido. Também, por essas alturas, permaneceu algum tempo exilado na Chamusca o Infante Carlos de Bourbon, pretendente carlista e absolutista ao trono espanhol.

O relógio batia as 9H30, hora marcada para o encontro no Largo 25 de Abril. O dia estava convidativo para a prospecção. Éramos muitos, pois o pessoal do ITN também quer efectuar esta caminhada: o João Carranca, o José Salgado, o António Falcão, o Rui Silva, o Eduardo Martinho, a Márcia Vilarigues do ITN e o João Calado, genro do segundo nomeado.

Atravessada a Rua Direita (estrada nacional), cortou-se a 1.ª à direita e a primeira paragem é em frente do Poiso do Besouro e vem, à memória de alguns mais felizardos, o belo almoço, num outro sábado: petinga frita, moleja (sarrabulho), bacalhau assado com couves a soco… Se um dia por aqui passarem, numa visita sem tempo marcado, aconselho a prova.


Paredes-meias, encontra-se um antigo Lagar, inactivo e agora recuperado pela Câmara Municipal como um Centro de Arqueologia Industrial. Ainda aqui voltaremos mais tarde. Chegamos agora ao Largo da Srª das Dores. Em nossa frente a Igreja de Nª Srª da Piedade e das Sete Dores! Seguindo pela Rua Eng. José Belard da Fonseca atingimos o Dique que protege a vila e os campos ribeirinhos das enchentes do Tejo. Daqui, a vila, qual presépio, empina-se pelos montes fronteiriços.


Barcos no Porto das Mulheres
Vamos até à beira de água, ao Porto das Mulheres, nome que abre a imaginação do viajante às mais diversas suposições. Em tempos idos, morada de avieiros e barcos de água-a-cima que sulcavam o rio de Lisboa até Abrantes. Levavam carvão, cortiça, vinho e outros produtos regionais; traziam o sal e outros mantimentos.


"Olhem que a estrada deve estar ainda cortada! Foi muita água!"
Aqui encontramos o Sr. Joaquim, sorridente e colaborante: “Olhem que a estrada deve estar ainda cortada! Foi muita a água!” E os campos estão alagados. Atravessa-se um pomar de laranjeiras. É um desolo, as laranjas apodrecidas, rebentam sob os nossos pés.

Entra-se outra vez na vila pela Rua José Luciano de Castro, Travessa da Batoca, direito ao Largo da Misericórdia, onde se ergue a Igreja da Misericórdia, templo do séc. XVII.

Igreja Matriz + Largo da Igreja da Misericórdia + Convento de S. Francisco
A próxima paragem é no Convento de S. Francisco, construído em meados do séc. XVIII e desafectado do culto católico a seguir à implantação da República, é hoje um centro de congressos e onde se assistirá a uma apresentação do Concelho.


Ermida de Nossa Senhora do Pranto

Sobe-se depois até à Ermida de Nª Srª do Pranto. Construção de traços simples, caiada de branco, com listas azuis e recheada de azulejos do séc. XVIII. À esquerda do altar, um painel representa a circuncisão do Menino Jesus e a mãe, ajoelhada, lança uma lágrima furtiva, condoída do sofrimento que a origem judaica impõe ao seu filho, mal sonhando o martírio para que ele estava fadado. À direita, outro quadro mostra o jovem Jesus, sentado num trono erguido entre os doutores, mais resplandecente que todos eles. Mas se o interior é interessante, o largo fronteiriço abre-se sobre a vila a nossos pés e prolonga-se sobre a vastidão da lezíria, correndo ao fundo o Tejo. Lá está a Golegã, depois o Entroncamento, mais ao fundo Torres Novas e, há quem diga que em dias claros se avista Abrantes.


Miradouro do Pranto de onde se avista toda a vila

É um bom mirante subir ao depósito da água - obra de 1938 do chamado Estado Novo, que quis perpetuar na legenda tamanha façanha, para que os vindouros pudessem reconhecer a visão de progresso que animava os governantes de então; as vistas são ainda mais largas, abarcando de um lado a lezíria e do outro a charneca ribatejana. No cimo de um monte surge a Ermida do Senhor do Bonfim. Lá chegaremos, com a sua ajuda.


Da Ermida da Senhora do Pranto, repicaram os sinos avisando o povo assustado, refugiado na Igreja da Misericórdia, do Milagre que o Senhor fez num dia chuvoso do Outono de 1807. A história conta-se em poucas palavras. Para espalharem no nosso país o ideal de igualdade, liberdade e fraternidade que o povo francês tinha lançado aos ventos em 1789, o exército de Napoleão invadiu Portugal. Ei-lo, do outro lado do rio, na vizinha Golegã onde praticou as maiores atrocidades. Concentrados nos Outeiros do Pranto e de S. Pedro, os Chamusquenses, aterrados, observavam os acontecimentos, angustiados com o seu futuro próximo: Seguiriam os franceses pela margem direita, na sua caminhada triunfal até Lisboa, abandonada à sua sorte pela Corte, que foi buscar no longínquo Brasil a chegada de melhores dias? Ou atravessariam o rio para saquear mais uma pequena vila indefesa? Abandonados pelo poder dos homens, só lhes restava rogar ao Senhor Deus da Misericórdia! Mas eis que, alegremente, se ouve o sino da Ermida da Nª Srª do Pranto. É que o Tejo, seguramente por intervenção divina, se enchera repentinamente, com uma corrente forte e caudalosa, arrastando consigo as barcas dos soldados. Chamusca estava salva!

Atinge-se o fim da vila, termina a estrada alcatroada e segue-se por um estradão ladeado de tojos e eucaliptos. E é pena, pois a paisagem que se disfruta merecia muito mais, mas, infelizmente, apesar de existir um aterro sanitário no concelho, não falta o lixo abandonado ao longo de todo o percurso. O caminho é fácil, com uma inclinação ligeira. Embrenhamo-nos pela charneca, com terrenos arenosos onde o eucalipto está a roubar espaço ao sobreiro. Já perto da Outeiro da Cabeça Alta, o terreno enruga-se, e numa centena de metros é preciso trepar cerca de quarenta. Mas vale a pena o sacrifício, pois é deslumbrante a paisagem que nos aguarda lá em cima.

Depois do almoço, descemos em direcção à ribeira de Arraiolos e acompanhamos de perto o seu cantar, rolando os seixos do leito. Atravessa-se a ponte construída em 1894, que substituiu uma antiga ponte romana. Por perto existe uma Cova da Moura. Foi certamente uma princesa moura, encantada pelo pai extremoso, emir da região, para a livrar de um saque eminente de um exército cristão pouco cristão e que, no fundo da cova, espera o beijo libertador do seu amado príncipe, que tarda a chegar. Talvez, no princípio, nas noites de verão de lua cheia, acompanhando o sussurro da brisa nocturna, a moura cantasse e chorasse a sua triste sina.

Ponte na zona da Cova da Moura

A ribeira estreita-se, e é altura de saltar para a outra margem e começar a subir para o Senhor do Bonfim. É uma ermida modesta, um pouco degradada. Do seu miradouro, a vista estende-se novamente por sobre a lezíria. No seu interior alguns ex-votos. Foi um local de devoção das mães que viram partir para África os seus filhos durante a guerra colonial. Aqui os vinham encomendar à sua protecção. Apetece descansar um pouco.

 A etapa seguinte é o Parque Municipal, onde se pode visitar uma casa rural tradicional, reconstituição de uma casa camponesa dos anos 30.

Vista do Parque Municipal
Estamos outra vez no Largo 25 de Abril. No outro lado da Estrada Nacional está sediado o Centro Regional de Artesanato, onde se destacam as cerâmicas, os trabalhos em madeira, o restauro de móveis antigos, a cestaria, a tecelagem, os bordados, os ferros forjados, a latoaria, os brinquedos que nos encantavam quando éramos crianças e oficinas onde artesãos mostram o seu trabalho.

A caminhada termina com uma visita a um antigo lagar de azeite, hoje um museu de arqueologia industrial.

Para combater a moda dos McDonald's aqui vai uma receita típica.

José Francisco Salgado


Bacalhau assado com couve a soco
Ingredientes: Bacalhau, couve, batata, pão, alho e azeite.
 Corta-se a couve a soco [Separam-se as couves e dá-se um soco nos talos. Apertam-se as folhas de couve em molho com a mão esquerda - como quem vai cortar caldo verde. Puxam-se as folhas, com um esticão, partindo-as e repete-se a operação até ao fim das folhas.] e coze-se com a batata. No fim da cozedura, coloca-se o pão e escorre-se a água. Se necessário, junta-se mais pão de modo que o preparado fique mais seco. Mexe-se, abre-se um buraco no meio do preparado e coloca-se o azeite e o alho. Deixa-se cozer o azeite, volta-se a mexer e acompanha-se com bacalhau assado.
In: Sabores, A gastronomia no Concelho da Chamusca, Novo Observador, 1999.

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