quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Em memória do doutor Carlos Cacho


Meu artigo publicado no jornal O MIRANTE, 14.Set.1993

Link para consulta da biografia do doutor Carlos Cacho:
http://www.itn.pt/memoria/bios/pt_bio_ccacho.htm


No próximo dia 25 de Setembro vai realizar-se na Golegã, sua terra natal, uma justa homenagem em memória do Doutor Carlos Cacho, físico ilustre que tive o prazer de conhecer como Director-Geral do Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN) da Junta de Energia Nuclear.

O meu primeiro contacto com o Doutor Carlos Cacho ocorreu em Setembro de 1961. O LFEN havia sido inaugurado em Abril desse ano e, por feliz coincidência, eu encontrava-me na fase terminal da licenciatura em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Lisboa. Tendo sido convidado por um colaborador do Doutor Carlos Cacho para trabalhar no Reactor Português de Investigação, honra que aceitei com entusiasmo, foi assim que me vi no seu gabinete, como físico em princípio de carreira. Recordo-me de lhe ter confessado, com sinceridade: «Já visitei as instalações do reactor nuclear. A sensação que tenho é que não sei nada». Circunspecto, mas cortês, tranquilizou-me: «É natural. Daqui a meia dúzia de anos, o senhor doutor terá uma sensação diferente». Compreendi: a formação de um investigador exige tempo. E fiquei, de facto, mais tranquilo.
O relacionamento com o Doutor Carlos Cacho, pelo menos em relação aos mais novos, era pautado por um certo distanciamento, o que não significava frieza ou menos interesse por nós. Compreendia-se que assim fosse. Pela diferença de idades e pela diferença de funções e de responsabilidades, além de que o Doutor Carlos Cacho tinha uma maneira de ser reservada.
Recordo que, talvez em 1966, surgiu uma diferença de opiniões mais viva entre nós. Na altura, perante uma “impertinência” minha, ele disse-me frontalmente: «Se o senhor doutor não está satisfeito, a porta é lá em baixo». Para bom entendedor... Porquê recordar este episódio agora, num momento que se pretende de homenagem? Faço-o para significar que estou à vontade para o homenagear, evocando três situações vividas após o 25 de Abril, em que o Doutor Carlos Cacho foi a figura central.
Logo no dia 26 de Abril, fui contactado por um colega no sentido de participar numa reunião restrita de investigadores do LFEN. O objectivo era conversar sobre o que fazer quando retomássemos o trabalho na segunda-feira seguinte. Verifiquei, depois, que um dos pontos da “agenda” consistia no afastamento dos chefes, onde, como é óbvio, se incluía o Doutor Carlos Cacho. Opus-me a essa acção, com argumentos que convenceram a maioria dos presentes.
A segunda situação ocorreu durante uma reunião da assembleia-geral do LFEN, talvez na segunda metade de 1974. O Doutor Carlos Cacho havia tomado uma decisão controversa, que bulia com o colectivo. A pressão exercida sobre ele, pela assembleia, levou-o a renunciar à decisão. Apesar disso, houve um grupo que continuou a pressioná-lo. A intervenção que então produzi, e que o Doutor Carlos Cacho agradeceu, foi de molde a amortecer o conflito. No final da reunião, elementos do referido grupo abordaram-me e condenaram asperamente a minha intervenção, pois fizera abortar os seus propósitos. Percebi, finalmente, que havia uma estratégia onde eu via apenas generosidade.
Em 31 de Janeiro de 1975, no decurso de uma outra reunião da assembleia geral do LFEN, o Doutor Carlos Cacho, que estava ausente, acabou por ser vítima de uma decisão “revolucionária” e foi afastado das suas funções, em nome da “vontade popular”. Acontece que, cansado e desiludido pelo evoluir da situação pós-25 de Abril, não participei nessa reunião. Tomei conhecimento da decisão ao fim do dia, aquando do regresso a casa. Com isto, limito-me apenas a registar um facto.
No dizer do seu irmão António, «Carlos Cacho é atingido pelo despudor de um grupo de indivíduos sem escrúpulos, despeitados, invejosos», sendo «acusado de “sabotagem” do Laboratório, com alardes servidos de uma terminologia e normas infames que a passividade daqueles que não podiam admitir tamanha vilania, acabaria por consentir». Compreende-se a emoção incontida deste depoimento, mas importa racionalizar o acontecimento com a objectividade que o distanciamento temporal possibilita. No fundo, o Doutor Carlos Cacho, tal como outros portugueses, teve a infelicidade de ser vítima inocente de circunstâncias adversas, ocorridas num momento particular da nossa história, em que o corte com o antigo regime passava pelo repúdio indiscriminado das estruturas hierárquicas. A verdade é que não havia razões objectivas para o afastar. Por outras palavras: O afastamento do Doutor Carlos Cacho foi injusto. Pena foi que a sua ilibação só se tenha verificado quatro meses e meio depois do seu falecimento, em 29 de Dezembro de 1976.
Homenagem em 25.Set.1993: inauguração do monumento com o busto do doutor Carlos Cacho no largo da Câmara Municipal da Golegã e a numerosa assistência na hora do discurso do Professor Veríssimo Serrão
A meu ver, o Doutor Carlos Cacho, enquanto homem de ciência, será recordado essencialmente por duas razões. Por um lado, ele foi um dos mais importantes obreiros, se não o maior, da afirmação dos físicos portugueses enquanto profissionais de reconhecida importância para o desenvolvimento do país. Por outro lado, e este é seguramente o seu mérito mais relevante, o Doutor Carlos Cacho foi o principal responsável pela criação e dinamização do LFEN, um complexo laboratorial ímpar, em Portugal, no domínio da energia nuclear.
Cerimónia em que o nome do doutor Carlos Cacho entrou na toponímia da Golegã (em primeiro plano: o senhor Presidente da Câmara, eu próprio e o irmão do homenageado, senhor António Cacho)

A melhor homenagem que lhe poderiam prestar, e prestaram de facto, aqueles que em 1975 não puderam valer-lhe, consistiu em terem-se empenhado a fundo na valorização do património técnico-científico legado pelo Doutor Carlos Cacho, através do LFEN, contribuindo para tornar o centro de estudos nucleares de Sacavém numa instituição de investigação com prestígio a nível nacional e internacional. De entre todos, é justo salientar o Doutor Jaime da Costa Oliveira, que foi, até há pouco tempo, director do Instituto de Ciências e Engenharia Nucleares (ICEN), legítimo “herdeiro” das tradições do LFEN. O seu afastamento, ocorrido no final do passado mês de Julho, enquadra-se naquilo que parece ser uma estratégia política de desmantelamento do complexo laboratorial de Sacavém, a que está subjacente uma lamentável falta de visão de Estado em relação ao domínio nuclear, área em que Portugal, como país da Comunidade Europeia, tem importantes responsabilidades, a nível interno e externo. A erosão sistemática a que está a ser sujeito o antigo LFEN, desde há algum tempo, é como que uma segunda injustiça feita ao Doutor Carlos Cacho. Resta confiar que o bom senso prevaleça.

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