terça-feira, 17 de setembro de 2013

Discursos “à la carte” (para as eleições autárquicas)

Meu artigo publicado em ALMA NOVA – 
Suplemento de O MIRANTE, 13.Ago.1997


Produzir um discurso não é tarefa fácil. Quem já o fez, ou tentou fazer, sabe que é assim. Preparar uma série de discursos para serem debitados numa campanha eleitoral, por exemplo, é obviamente ainda mais complicado. Acresce que se gasta imenso tempo a confeccionar discursos, as mais das vezes em pura perda. Os reais ou potenciais candidatos às eleições autárquicas que se avizinham devem saber do que se está a falar... Mas não são só esses que poderão beneficiar com a receita de discursos à la carte contida nesta prosa. Se o leitor é, ou pode vir a ser, um candidato a qualquer cargo (autarquia, cooperativa, associação cultural, clube desportivo, etc.) e tem necessidade de “inspiração” em matéria de oralidade, não desista, vá até ao fim. E mais: guarde este escrito, porque poderá ser-lhe de grande utilidade.

Note-se que não estamos a falar de discursos em que o orador queira exprimir ideias claras, em bom português. Não, não é disso que se trata. Convém ter a noção da relatividade das coisas: possuir ideias próprias é um bem escasso, exprimir ideias com clareza é um luxo e expor ideias claras, em bom português, é uma raridade, já não se usa. Em consequência, e porque não se pretende enganar ninguém, fica esclarecido que aquilo de que estamos a tratar é de discursos do tipo “buraco negro”, isto é, discursos enfáticos em que se fala muito sem dizer nada. Reconheça-se que tal tipo de discurso é de extrema conveniência nas situações em que o orador pretenda impressionar o auditório, sem se comprometer, sobretudo sem se comprometer.

Para conseguir os seus intentos, o candidato a orador só tem que se orientar pelo Guia prático de discursos, de autor anónimo, que apresentamos neste artigo. Trata-se de um pequeno conjunto de “frases”, distribuídas por um quadro com quatro colunas e dez linhas, a serem encadeadas com uma certa sequência. O guia permite cerca de 10000 combinações das referidas “frases”, proporcionando um discurso fluido de 40 horas, o que equivale a 80 discursos de meia hora. É obra!

A utilização do guia é muito fácil. Vejamos como se procede. É assim: Começa-se pela primeira linha da Coluna 1 – Minhas senhoras e meus senhores –, que é sempre uma maneira apropriada de iniciar um discurso. Seguidamente, passa-se para uma linha qualquer da Coluna 2, depois para qualquer linha da Coluna 3 e, finalmente, para uma linha qualquer da Coluna 4. Chegado aqui, o candidato a orador só tem que regressar à Coluna 1, e continuar a saltar de coluna em coluna, sem se preocupar com a ordem da linha escolhida. Bate sempre certo.

Exemplificando, para os mais inexperientes nestas lides: Minhas senhoras e meus senhores, a consulta aos numerosos militantes obriga-nos a uma análise das directrizes de desenvolvimento para o futuro. A prática do quotidiano demonstra que o cumprimento das linhas do programa facilita a criação dos modelos de desenvolvimento. Por outro lado, o início da acção geral de formação de atitudes garante a participação de um grupo importante na concretização das novas propostas. Etc. Etc. Como se vê, este é o tipo de discurso que, não servindo para nada, serve para tudo, com a vantagem de poder ter uma dada interpretação e a interpretação exactamente contrária.

É claro que o candidato a orador necessita de adequar o discurso às circunstâncias. Por exemplo, pode não fazer sentido falar de militantes, mas sim de munícipes, conterrâneos, associados, camaradas, etc. Por outro lado, convém dar um toque pessoal ao seu discurso. Fica sempre bem empregar palavras que estejam momentaneamente na moda: postura, vertente, sinergias, contratualização, contexto, problemática, etc. Para a campanha das autárquicas, a palavra regionalização é imprescindível, e se o candidato sugerir a certa altura uma guerrazita Norte-Sul, é bem possível que recolha fartos aplausos. Noutros casos, convém não esquecer a interioridade, a macrocefalia, a ditadura do Terreiro do Paço, etc. Para os candidatos mais distraídos, convém lembrar que as forças de bloqueio já passaram à história. A não ser que o Tribunal Constitucional entre nessas contas...

É duvidoso que seja conveniente introduzir um sinceramente a meio do discurso: é que, em relação às partes restantes, os ouvintes poderão suspeitar da sinceridade do orador. Uma coisa há, todavia, que não é de todo aconselhável: é a utilização da preposição “de” a despropósito. Se o candidato a orador disser eu penso de que, fica logo exposto a dichotes. E não há necessidade.
 
GUIA PRÁTICO DE DISCURSOS


Coluna 1


Coluna 2

Coluna 3

Coluna 4
Minhas senhoras
e meus senhores
o cumprimento das linhas do programa
obriga-nos a uma análise
das condições financeiras e administrativas existentes
Por outro lado
a complexidade dos estu­dos efectuados pelos dirigentes
cumpre um papel fundamental na formação
das directrizes de desen­vol­­vimento para o futuro
Apesar disso
o aumento constante, em qualidade e quantidade, e a extensão da nossa actividade
exige a precisão e a determinação
do sistema de participação geral
No entanto, não nos esqueçamos que
a estrutura actual da organização
ajuda a preparação
e a realização
das atitudes dos membros das organizações para com os seus deveres
De igual modo
o novo modelo de actividade da organização
garante a participação de um grupo importante na concretização
das novas propostas
A prática do quotidiano
demonstra que
o desenvolvimento contínuo das diversas formas de actividade
cumpre deveres importantes na realização
das acções de formação tendentes ao progresso
Não se torna indispensável realçar o peso e o significa­do destes problemas, já que
a nossa constante actividade de informação e propaganda
facilita a criação
dos sistemas de formação de quadros que corres­pon­­dam às necessidades
As experiências
ricas e diversas
o reforço e o desenvolvi­mento das estruturas
impede a apreciação da importância
das condições indispensá­veis ao exercício das actividades programadas
O trabalho de organização, mas sobretudo
a consulta aos numerosos
militantes
oferece uma prova interessante de verificação
dos modelos de desenvolvimento
Os elevados princípios políticos, assim como
o início da acção geral de formação de atitudes
implica o processo de rees­tru­turação e de modernização
das formas de acção

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